Agora que estamos confinados, percebemos a invalidez da pressa, do caos, das cifras e de uma porção de outras coisas que fundamentavam o nosso modo de viver, escreve Klausney Muniz, terceiro colaborador do blog Armazém da Cultura em tempos de pandemia. Klaus é formado em Letras (UECE) e Jornalismo (Estácio), com especialização em Ensino de Línguas e Escrita Literária.
A gente começa a dar volta desde a barriga da mãe – aprendi isso quando ainda era pivete em conversas com a avó, enquanto ela ia e voltava dentro da rede. Às voltas com a agulha de tricotar, vovó falava que esse negócio era mágico, porque de repente a gente estava num canto, aí do nada escafedia. De dia café, à noite chá. De dia feliz, à noite triste, vice-versa. Depois da lição, passei a observar a constatação da minha velha, sobretudo ao confirmar a teoria com o professor de Ciências, que adorava fazer suas voltas e “desvoltas” pelo colégio.
O sol vai e volta todo santo dia (aliás, o dia nem precisa ser santo); as pessoas vão e voltam da igreja, da escola, do trabalho e das voltas interrompidas; os adjetivos se apaixonam pelos seus antônimos; os ponteiros continuam girando, achando que daqui a pouco vão concluir a mesma volta, mas o tempo nunca vai completar o mesmo giro, porque a impermanência já existia bem antes do filósofo Heráclito.
Há um segundo, eu começava esse parágrafo e você piscava o olho para captar essas letras. Daqui a um segundo, não sei o que pode acontecer conosco – se o texto acabar aqui, então significa que até as palavras foram dar volta em outro lugar. Bem, não acabou. Continuamos. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, lembrei. O que eu quero dizer, que é meio óbvio, é que a gente nasce segundo e morre segundo. Um conhecido meu planejou a vida toda sentado numa cadeira dura e levou só um segundo para dar a volta. Um parente, por sua vez, investiu quase a vida toda para se recuperar de uma doença grave e também levou só um segundo para dar a volta.
As notícias que não param de ir e vir são baseadas em tramas desse tipo – o tempo não dorme, sofre de insônia nas esquinas. Recentemente fomos obrigados a abrir mão da liberdade e da cegueira que não notava o velhinho com cara de criança governando a existência – pelo menos é empenhado em fazer jus ao cargo, diferente dos líderes que sequer conseguem fingir que são responsáveis. Agora que estamos confinados, percebemos a invalidez da pressa, do caos, das cifras e de uma porção de outras coisas que fundamentavam o nosso modo de viver. A verdade é que Saramago previu exatamente a condição que nos rege – somos cegos que veem, cegos que, vendo,não veem. E acrescento: cegos que não ficam tontos de tanto dar volta por aí.
Pelo menos aprendemos com essas voltas – aprendi, por exemplo, que ficar em casa também é ficar um pouco em si e se cuidar para não cansar das voltas e dos rodopios. O mundo não parou de girar, nem o relógio, nem os hospitais, nem a fábrica de boletos, nem o habitat dos bichos, nem eu, nem você, nem os outros. Permanecemos aqui, à mercê de fé e reza pelos heróis sem capa e pela normalidade da qual tanto nos maldizemos.
Daqui a pouco voltamos a morar de mala e cuia na casa grande e espaçosa que tem um alicerce que gira.Torço para que a gente inclusive se recupere da doença de reclamar, de poluir e de achar que é possível ser feliz sozinho nessas voltas. *Klaus cursa mestrado acadêmico em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará. Já participou de oficinas de escrita e de roteiro cinematográfico. É um dos autores da coletânea Mirabilia– contos de natal (2018) e de Todos os Tempos do Universo (2019) – coletânea de crônicas produzidas pelo corpo discente da especialização em Escrita Literária.
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Professor que bom trabalhar você. Simples, competente, harmônico, espírito elevado. Continue mostrando com sua maneira de escrever amorosa e simples a verdade da vida. Valeu. Professor Roberto EM Angélica Gurgel.